Sem comentários

Era uma tarde chuvosa do verão de 1979. Ele era só mais um habitante daquela pequena cidade que partia em busca do sonho de realizar um curso superior. Em sua mala de viagem, roupas e livros espremiam um vidro de colônia barata e um pequeno rádio de pilhas. O ônibus já se colocara em marcha, deixando Cabo Frio com destino a Niterói, para onde passara em concurso, ganhando uma bolsa integral em um renomado curso “Pré-Vestibular”. Sua ansiedade, diante de renovação de ares, mantinha seus olhos abertos, registrando tudo, ignorando o cansaço da noite anterior quando a insônia lhe visitara. O que esperar da nova vida? Teria novos amigos, tão bons como os da sua cidade de origem? E o novo trabalho que já o aguardava? Muitas questões careciam de respostas.

Como imaginara, não foi nada fácil adaptar-se aos novos costumes. Longe da fraternidade natural da sua cidadezinha, onde todos se conheciam. Conviveu com a disputa por espaço no trabalho e na vida social. Os estudos e os livros eram seus principais companheiros, mas insuficientes para curar a angústia provocada pela solidão e saudade dos amigos e familiares que deixara. Se sobrasse dinheiro para visitas mais frequentes ao antigo lar, talvez o problema pudesse ser minimizado, mas a remuneração prometida ficara no campo das promessas.

Certa vez, andando a esmo pelo centro do Rio de Janeiro, distraído com o jornal que lia enquanto caminhava, ouviu um som de piano que lhe chamou a atenção. Vinha de um antigo prédio próximo, entre o Largo de São Francisco e a Rua da Carioca. Aproximou-se do local e distinguiu outros sons, como solfejos, rufar de tambores e diversos instrumentos de sopro. Sim, era a “Escola de Música Villa Lobos”, mantida pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. Em sua mente surgiram as imagens do filme “Fama”, célebre musical que marcou o início dos anos 80. Subiu rapidamente a escadaria de acesso ao segundo piso, onde ficavam várias salas de aula, a secretaria e o auditório. Era o dia do concurso de admissão, o que explicava a presença de muitos candidatos nos corredores. Sendo amante da música e tendo por companheiro inseparável um surrado violão onde dedilhava as canções da época, de ouvido, sem nunca ter estudado teoria musical, meio sem querer se candidatou a uma vaga e foi aprovado. Foi essa uma boa maneira de ocupar parte do tempo livre. Sim, um novo desafio!

No primeiro dia de aula, sentiu-se deslocado, como um “cachorro que caiu da mudança”. Ali estavam somente pessoas mais jovens, quase crianças, com as quais teria que conviver — seriam colegas de turma. Acomodou-se no fundo da sala, quase lamentando pelos seus 25 anos.

Chega o professor Sérgio, figura ímpar com seu estranho hábito de entrar na sala e exibir-se ao piano, sempre com repertório diverso, antes mesmo de cumprimentar qualquer pessoa. Após a exibição cumprimentava todos, apertando a mão de cada um, cujo nome sabia. Em seu primeiro contato com a turma, realizou uma pequena enquete, com o objetivo de saber o que motivou cada aluno a estudar música. Escolhia aleatoriamente algumas pessoas e elas tinham respostas como:

— Meu pai foi maestro na Orquestra Sinfônica do Corpo de Bombeiros.

— Minha mãe foi a primeira voz no coral X.

— Meu tio toca oboé na banda da minha cidade.

— Meu irmão é violonista clássico.

E aí por diante. Todos tinham um músico na família.

Muito constrangido, nosso personagem torcia para que o dedo do empolgado professor não apontasse em sua direção, mas caso isso ocorresse, já maquinara uma estratégia — diria que seu pai fora instrumentista, mas teria que ser um instrumento bem popular, assim, não teria outra pergunta. Não tardou para que o professor lhe indicasse com o dedo. Olhou para trás, na esperança de que pudesse se tratar de outro colega, mas não havia ninguém além da sua cadeira. Era hora de colocar seu plano em ação.

— Meu pai tocava órgão — respondeu timidamente, na esperança de que fosse suficiente para aplacar a curiosidade do mestre.

— Órgão? Mas que tipo de órgão? Realejo, positivo, de estudo ou de coro? Barroco, Ibérico ou Romântico? De tubos, fole ou elétrico? — Perguntou o professor, exibindo seu conhecimento e solicitando mais detalhes.

Com essa ele não contava! Como poderia saber da existência de tantos tipos de órgão? Melhor seria ter escolhido um instrumento mais rudimentar, como berimbau, por exemplo.

— Então, que tipo de órgão seu pai tocava? — Insiste o professor Sérgio.

— Órgão sexual, professor! Somos sete irmãos — responde num impulso.

— Na minha família ninguém tem sequer cacoete de músico! — Complementa.

O riso foi geral. A resposta, ainda que imprevidente, serviu para ambientá-lo na turma. O riso foi geral. A resposta, ainda que imprevidente, serviu para ambientá-lo na turma.

Como registra a cultura popular: mentira tem pernas curtas! Mentir não é a melhor solução em hipótese nenhuma, ainda mais quando o praticante não domina o assunto.

A música não era seu objetivo de vida, mas lhe serviu como apoio em várias situações durante sua trajetória. Os momentos de melancolia promovidos pela lembrança de tempos pretéritos eram oriundos, na realidade, da sua incapacidade de observar os recursos que sempre estiveram bem próximos, ao alcance das suas mãos.

Paulo Jorge

(Em 20/02/2014, revisado em 09/12/2023)

Compartilhe com seus amigos

Sobre o autor

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *