Ah! Como sinto saudade da vida de criança na roça! Principalmente das noites ricas em estrelas, imersas em intensa negritude na hora de dormir, especialmente na lua nova. Dormíamos cedo, os seis filhos e meus pais, pois acordavam antes do raiar do sol para a labuta cotidiana.
Era uma noite como outra qualquer. Eu, que já dormia no meu próprio quarto com cerca de oito anos, tentava esticar a noitada de leitura, tendo à cabeceira da velha cama de madeira uma lamparina e sua tremulante chama, constantemente vigiada para que um de seus borrões não caísse e incendiasse o velho lençol sobre a esteira de taboa. Nem a fumaça negra e o cheiro do querosene queimado me faziam desistir de trilhar as linhas fantasiosas do romance que lia. Afinal, achava muito chato parar a leitura no meio do capítulo. Mas não deu tempo. A voz do meu pai mais uma vez soou alta e forte:
– Paulo Jorge, apague essa luz. É hora de dormir! A frase ecoou seguida do ruído que ele fazia ao soprar a lamparina que ficava na sua cabeceira – ritual repetido todas as noites. Pela entonação, notei que seria o último aviso. O romance teria que esperar.
Sendo o último a deitar, tentei conciliar o sono, sem conseguir. Aproveitei o breu da noite para prestar atenção nos sons variados que ela me oferecia. Lá fora o barulho dos grilos se misturavam com o coaxar das rãs e pererecas. Essa cantoria, importante para eles, emanava dos machos na tentativa de atrair seus pares. Para mim importava muito mais, pois sabia que quando essa melodia desencontrada cessava repentinamente era sinal de predadores por perto – geralmente cobras. O silvo do vento gelado que entrava pelos vãos dos caibros quase abafavam o ruído dos animais, companheiros de todas as noites. Como as paredes da nossa casa não se elevavam até o teto sem forro, o vento forte esfriava todo o ambiente. O cobertor curto teimava em deixar os pés de fora ao cobrir a cabeça.
Meu pai esperava um pouco, deitado e em completo silêncio, para que pensássemos que ele estaria dormindo. Quando achava que tínhamos pegado no sono, acendia novamente a lamparina e conferia-nos um a um para cobrir-nos os pés – poderiam estar descobertos e resfriados. Os filhos menores dormiam no seu quarto e eram inicialmente atendidos. A seguir, o quarto das minhas irmãs e por último, o meu. Nessa hora eu fingia dormir. Escutava o chinelo de couro pisando com cuidado no assoalho de madeira, tentando não fazer barulho. Antes de ouvir o ruído da tramela, que podia ser acionada dos dois lados da porta, punha os pés para fora da coberta, pois sabia que seriam cobertos com o cuidado de quem embrulha um artigo valioso. Era a maneira que meu velho demonstrava seu carinho pelos filhos, ignorando o comportamento machista no qual fora criado. Esse procedimento se repetia todas as manhãs e isso muito me agradava!
Naquela época eu já estudava na cidade, muito distante de onde morava. Meu pais acordavam bem mais cedo para os preparativos da minha viagem à escola. Enquanto mamãe preparava a merenda caseira, meu pai pegava o cavalo no campo, colocava o freio, arreio, ajustava a altura dos estribos e me ajudava a montar. Espalmando a anca do animal, fazia a recomendação costumeira:
– Cuidado para não perder o ônibus!
O coletivo não chegava à minha localidade, por isso tinha que sair de casa na quarta hora da manhã e embarcar na metade do caminho – um pequeno lugarejo onde o cavalo ficava amarrado com corda comprida para pastar enquanto eu não retornava. Tempos difíceis.
Anos depois minhas irmãs e primas também faziam essa viagem. O cavalo foi substituído pela charrete que conduzia a nós cinco para a mesma jornada.
– As crianças estão se sacrificando muito – reclamava minha mãe. Foi então que meu pai tomou uma decisão muito difícil para ele: mudaríamos para a cidade. Em vez do nosso sacrifício com a viagem, ele passaria a viajar para cuidar da roça. Assim foi feito.
A adaptação foi difícil. Tivemos que caber em uma casa alugada muito menor que a nossa. A sala e o único quarto foram divididos com cortinas para proporcionar o mínimo de privacidade necessária. Minha mãe tinha que cuidar sozinha dos preparativos para a escola, pois meu pai saía muito cedo para trabalhar. Mais de uma vez o pegamos soprando a lâmpada elétrica que ficava à sua cabeceira, como se fosse a antiga lamparina que apagava com um simples sopro – ato falho que sua mente o obrigava a repetir.
A vida continuou, todos nos adaptamos, mas alguns bons costumes permaneceram. Nossos pés continuaram sendo cobertos todas as noites, o que nos resguardava do frio – carinho que jamais esqueceremos!
Hoje ele já não está entre nós. Ficaram os bons ensinamentos morais e a saudade dos tempos indeléveis em nossas mentes. O cuidado que ele tinha conosco procuramos transferir para nossos filhos. A melhor herança foi a educação que tivemos.
Lá fora o vento sopra. Pode ser que a noite esfrie… Sem meu velho para me cobrir os pés, dormirei de meias.
Paulo Jorge
11 de agosto de 2019 (Dia dos Pais)
Bom dia Paulo Jorge! Nossos pais, nossos “mestres” de saudosa lembrança! Parabéns pelo texto rico de bons exemplos de fibra, persistência e sentimento. Abs
Boa tarde, Flávio! Sem dúvida, sempre nos inspiramos em nossos pais. Somos felizes por conseguir herdar boas características e aprimorar o que nos for possível, segundo a Lei do Progresso.
Abraços.
Muito lindo tudo isso !só trás saudades boas.
Que bom que você gostou, prima! Essa é a nossa história. Tem outras aqui: https://www.paulojorge.art.br/category/literatura/cronicas/
E também aqui: https://www.paulojorge.art.br/um-pouco-sobre-mim/
Todas sobre a nossa infância. Um dia sairá um livro.