
— Você aceita encomendas? Eis uma pergunta que muitos artistas já ouviram. Alguns respondem afirmativamente sem analisar fatores que envolvem o ato de pintar sob encomenda. Acabam realizando obras complexas e muito demoradas, já que na hora de pintar há detalhes da paisagem ou referência que não podem ser suprimidos na composição. Como amenizar esses fatores complicantes? Veremos algumas reflexões sobre o assunto.
A referência
Lembro da minha infância no interior, quando os vendedores de retratos visitavam as famílias para oferecer seus serviços. Era comum as casas da época terem suas paredes ornamentadas com fotos dos familiares, geralmente ampliações e montagens retocadas com pintura. Para isso, as famílias interessadas forneciam fotografias em preto e branco — quase sempre de péssima qualidade — retiradas de velhos álbuns ou de documentos. O resultado era imprevisível! Nem sempre atendia às expectativas dos clientes que esperavam ansiosos, pois os artistas costumavam demorar bastante nesse processo. Muitos sequer reconheciam na figura retratada o familiar que tanto amavam. De quem seria a culpa nesse caso? Do cliente que gerou expectativa excessiva ou do artista que aceitou usar uma referência de má qualidade? Certamente deste último. Uma vez que não conhecia a pessoa retratada e que somente dispunha de uma foto sem definição de detalhes, aceitou o serviço. Por mais habilidoso que fosse, dificilmente conseguiria resultado satisfatório. Nossa casa tinha na sala o retrato dos meus pais, baseado numa foto antiga quando eu ainda era um bebê.
Fotos, muitas fotos!
Caso o artista aceite encomenda de paisagens, é aconselhável que disponha várias fotos do local. Quantas fotos? — Podem perguntar. Muitas! Quanto mais melhor. Certamente há os que contestam tais instruções, mas há várias situações a observar:
1) Apresentar ao cliente vários ângulos do que pretende retratar, para que ele escolha uma das fotos.
2) Se o artista não conhece o local, é melhor basear-se numa referência fotográfica do que inventar elementos para a composição.
3) Há elementos que não ficam bem definidos numa única exposição fotográfica, necessitando observação em ângulo diferente.
4) As fotos, se possível, devem ser feitas na mesma hora do dia. Isso permite maior fidelidade ao pintar luzes e sombras.
5) Várias fotos minimizam a necessidade de revisitação a locais privados, o que poderia causar constrangimento ao seu cliente.
As sugestões acima não constituem regras rígidas. Eu as utilizo por conta das limitações que tenho. Há colegas que têm memória visual muito desenvolvida, e para estes basta olhar uma única vez para a referência — pintam a obra consultando seus registros em memória. Admiro essas pessoas!
Por último, deixo mais um conselho: caso tenham que revisitar o local, não demorem muito tempo após a primeira visita, sob pena do cenário estar modificado. Isso já aconteceu comigo.
O cliente escolheu a foto. Como compor a pintura?
O cliente após escolher uma foto a devolve com uma série de observações. Normalmente pede para retirar vários elementos ou colocar objetos que aparecem noutras fotos. Nessa hora, o artista deve explicar que nem tudo pode ser alterado, pois correrá o risco de descaracterizar o local. Embora não precise explicar detalhes ao interessado, o artista paisagista conhece regras de composição e sabe que, para produzir resultado interessante, deve obedecê-las. Já publicamos artigos sobre o assunto:
1) COMPOSIÇÃO – REGRA DOS TERÇOS (https://www.paulojorge.art.br/composicao-regra-dos-tercos/) — Consiste em dividir a tela em nove quadrantes iguais, traçando duas linhas horizontais e duas verticais. Os pontos de interesse devem ser preferencialmente posicionados sobre as interseções dessas linhas ou, na impossibilidade, ao longo das próprias linhas. O Horizonte deve ser posicionado na linha superior ou inferior — nunca no centro da tela.
2) COMPOSIÇÃO: PROPORÇÃO ÁUREA (https://www.paulojorge.art.br/proporcao-aurea/) — Encontrar o ponto ideal para dividir um segmento de reta, usando uma certa fórmula matemática (que abordamos em detalhes no artigo indicado). Na prática, pegamos o comprimento da tela, dividimos por 1,618 e marcamos esse ponto. Fazemos o mesmo com a altura. Depois, basta espelhar os dois pontos encontrados no outro lado da tela e traçar as linhas. O posicionamento dos elementos é semelhante ao sugerido para regra dos terços, que na realidade, é uma simplificação desta. Observemos que a proporção áurea está presente em vários elementos da natureza e foi utilizada por vários mestres da pintura clássica (veja artigo). Os pontos são gerados ligeiramente mais próximos do centro da tela do os que foram gerados pela regra dos terços.
3) COMPOSIÇÃO: LINHAS GUIA (https://www.paulojorge.art.br/composicao-linhas-guia/) — Por meio de linhas da pintura, que podem ser uma estrada, ondas, raios luminosos e outros, o atrista induz o observador a olhar para o objeto em destaque. Na pintura que estou usando como exemplo, ondas no espelho d’água foram acentuadas e direcionadas ao barco, colocando-o em evidência.
4) COMPOSIÇÃO: A TECNOLOGIA COMO ALIADA (https://www.paulojorge.art.br/composicao-tecnologia/) — Tecnologias que podem ser utilizadas pelo artista para aplicação das regras acima.
Problemas e soluções

O objetivo do cliente era ter uma pintura do seu barco que estava ancorado nos fundos da sua casa (cais em primeiro plano). Quando selecionou a foto, marcou vários elementos para serem removidos na pintura, dentre eles, todos os barcos (exceto o seu), o canoeiro que remava entre as embarcações, o mastro no início do cais e outros detalhes. Queria também destacar a ilha (em segundo plano). Argumentei com ele que alguns detalhes poderiam ser removidos, mas outros não, sob pena de descaracterizar o lugar, que é muito conhecido em Cabo Frio – RJ.
1) PROBLEMA: o cenário estava com excesso de elementos. SOLUÇÃO: Remover o barco atrás do barco principal, o canoeiro, a boia próxima da poita (amarração do barco), a embarcação que ocultava a entrada do canal e as folhas do coqueiro do quintal do vizinho (por estar desequilibrando a composição). O barco sobre o pequeno cais (à direita) foi mantido para servir de referência ao barco do cliente.
2) PROBLEMA: o contratante manifestou desejo de remover os barcos ao fundo, no final do cais. SOLUÇÃO: manter os barcos (por serem de uma empresa pesqueira conhecida, cujo prédio está representado), mas ordená-los, harmonizando suas cores e observando as regras de perspectiva aérea.
3) PROBLEMA: o dia da foto apresentava pouca insolação, dando a sensação de frio ao ambiente. SOLUÇÃO: aumentar a temperatura das cores (ver artigo “Perspectiva atmosférica” (https://www.paulojorge.art.br/perspectiva-atmosferica/).
4) PROBLEMA: Alguns elementos apresentavam cores muito intensas, como o morro, a ilha no terceiro plano e algumas construções ao longo do cais. SOLUÇÃO: usar a técnica de velatura nos itens citados (ver o artigo “Veladuras” (https://www.paulojorge.art.br/veladuras/).
5) PROBLEMA: o barco a ser destacado estava muito distante na foto, com sua capota sobrepondo-se à ilha. SOLUÇÃO: aproximar o barco. Observar que a aproximação de objetos muda o ângulo de visão. Compare o cais que suporta um barquinho, mais distante e o cais no primeiro plano. Embora a largura seja a mesma, o mais próximo parece mais largo, pois o ângulo de visão é diferente. Outros pontos que devem ser observados ao mudar objetos de posição são luzes, sombras e espelhamento (caso tenha).
6) PROBLEMA: ao aproximar o barco, o pequeno mastro (no cais) se sobrepôs a ele. SOLUÇÃO: reposicionar esse mastro no outro lado do cais (oculto), uma vez que ele é móvel e funciona com encaixes.
7) PROBLEMA: ao ser reposicionado, o barco deixa o principal ponto de interesse (segundo as regras de composição, acima citadas). SOLUÇÃO: enfatizar as ondulações no espelho d’água, direcionando-as ao barco, formando linhas guia (veja regras acima).
8) PROBLEMA: ao retirar as embarcações em movimento, a paisagem fica excessivamente estática. SOLUÇÃO: humanizar a cena introduzindo duas pessoas e uma pequena embarcação encalhada na ilha (à esquerda).
IMPORTANTE: cuidado ao usar referências fotográficas! As lentes das câmeras costumam distorcer as fotografias, principalmente quando usamos lente “grande angular” para cobrir área maior. Isso pode induzir a erros de perspectiva linear. Muitas vezes só descobrimos o erro após pintar os elementos. No caso da pintura que estou usando como exemplo, cometi esse erro e tive que corrigir. Como a proporção da tela era diferente da foto, a solução foi estender o cais do primeiro plano (lado esquerdo). Só então vi que nem todas as linhas do cais estavam apontando para a linha do horizonte (final do cais de alvenaria, onde estão ancorados alguns barcos). Resultado: muito retrabalho que poderia ser evitado se eu tivesse observado melhor. Deixei tudo registrado, até os erros, na esperança de ajudar algum colega a evitar essa armadilha. Veja o PASSO A PASSO no endereço a seguir: O BARCO E A ILHA —https://www.paulojorge.art.br/project/o-barco-e-a-ilha/.
Pintura utilizada

Deixe um comentário